quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Pátria de semianalfabetos


No meu tempo de ensino fundamental, redação tinha o belo nome de composição.
Frei Mateus Rocha, frade dominicano e guru de uma geração indignada, nos aconselhava a levar sempre um livro, ainda que sob certeza de não haver tempo de abri-lo. Abracei a recomendação e me surpreendo com as inúmeras oportunidades, ao longo do dia, de prosseguir a leitura.
No meu tempo de ensino fundamental, redação tinha o belo nome de composição. Ainda hoje, ao escrever, me sinto "compondo", imprimo ao texto uma musicalidade que os entendidos chamam de sotaque literário.
As novas tecnologias ameaçam o prazeroso ato de ler e escrever. Fissurados nas redes sociais, muitos reduzem a linguagem aos seus signos elementares e preferem ver o turbilhão de imagens a ler a cadência narrativa.
Ler e escrever exigem educação, aprendizado, amor à palavra lida e escrita, para que ela nos ofereça seus múltiplos significados e nos revele a beleza que encerra.
A presidente Dilma, ao ser reempossada, a 1º de janeiro, cunhou o lema: "Brasil, pátria educadora". Prometeu que a educação, afinal, será prioridade de governo (embora já tenha sofrido um corte, este ano, de R$ 7 bilhões em seu orçamento).
Tomara que o governo ponha fim às escolas sucateadas, à má remuneração dos professores, à carência de tempo integral. As escolas públicas, excetuando universidades, fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem. Qual será o futuro de uma pátria cujos cidadãos e cidadãs não sabem escrever uma simples redação escolar?
Há pouco saiu o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2014. Prestaram exames 5,9 milhões de jovens brasileiros.
O estudante aprovado no Enem tem o direito de se inscrever para ocupar uma das 205.514 vagas oferecidas, em 2015, por 59 universidades federais; 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia; e dois centros federais de educação tecnológica.
Dos quase 6 milhões inscritos, 529.374 ganharam nota zero em redação, cujo tema proposto foi "Publicidade infantil", questão em debate na sociedade, suscitada pelo Instituto Alana.
Entregaram a prova em branco 280.903 alunos. São os analfabetos funcionais, aqueles que não cultivam o hábito de leitura e, com certeza, redigem apenas monossílabos e símbolos gráficos nas redes sociais... Eles sabem ler mas não compreender o que leem.
Um total de 217,3 mil redigiram um texto alheio ao tema. Treze mil copiaram o texto motivador; 7,8 mil escreveram menos de sete linhas; 3,3 mil embutiram na redação trechos do texto motivador de forma desconectada; e 955 escreveram ofensas aos direitos humanos. E apenas 250 mereceram a nota mais alta!
Os que mereceram nota máxima em redação revelaram a razão do êxito: o hábito de leitura de livros e redação de textos. Hábito que começa na infância, quando pais e professores contam e leem histórias, ajudando a criança a desenvolver a síntese cognitiva.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.

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