quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Novos paradigmas


Hoje, com a pós modernidade, predominam o efêmero, o individual, o subjetivo e o estético.
A morte da modernidade merece missa de sétimo dia? Os pais da modernidade nos deixaram de herança a confiança nas possibilidades da razão e nos ensinaram a situar o ser humano no centro do pensamento e a acreditar que a razão sem dogmas e donos construiria uma sociedade livre e justa.
Pouco afeitos ao delírio e à poesia, não prestamos atenção à crítica romântica da modernidade - Byron, Rimbaud, Burckhardt, Nietzsche e Jarry. Agora, olhamos em volta e o que vemos? As ruínas do Muro de Berlim, a Estátua da Liberdade tendo o mesmo efeito no planeta que o Cristo do Corcovado na vida cristã dos cariocas, o desencanto com a política, o ceticismo frente aos valores. Somos invadidos pela incerteza, a consciência fragmentária, o sincretismo do olhar, a disseminação, a ruptura e a dispersão. O evento soa mais importante que a história e o detalhe sobrepuja a fundamentação.
O pós-moderno aparece na moda, na estética ou no estilo de vida. É a cultura de evasão da realidade. De fato, não estamos satisfeitos com a inflação, com a nossa filha gastando mais em pílulas de emagrecimento que em livros e causa-nos profunda decepção saber que, neste país, a impunidade é mais forte que a lei.
Ainda assim, temos esperança de mudá-lo. Recuamos do social ao privado e, rasgadas, as antigas bandeiras de nossos ideais transformam-se em gravatas estampadas. Já não há utopias de um futuro diferente. Hoje, no mínimo é considerado politicamente incorreto propagar a tese de conquista de uma sociedade onde todos tenham iguais direitos e oportunidades.
Agora predominam o efêmero, o individual, o subjetivo e o estético. Que análise de realidade previu a volta da Rússia à sociedade de classes? Resta-nos captar fragmentos do real (e aceitar que o saber é uma construção coletiva). Nosso processo de conhecimento se caracteriza pela indeterminação, descontinuidade e pluralismo.
A desconfiança da razão nos impele ao esotérico, ao espiritualismo de consumo imediato, ao hedonismo consumista, em progressiva miamização de hábitos e costumes. Estamos em pleno naufrágio ou, como predisse Heidegger, caminhando por veredas perdidas.
Sem o resgate da ética, da cidadania e das esperanças libertárias, e do Estado-síndico dos interesses da maioria, não haverá justiça, exceto aquela que o mais forte faz com as próprias mãos.
Ingressamos na era da globalização. Graças às redes de computadores, um rapaz de São Paulo pode namorar uma chinesa de Beijing sem que nenhum dos dois saia de casa. Bilhões de dólares são eletronicamente transferidos de um país a outro no jogo da especulação, derivativo de ricos. Caem as fronteiras culturais e econômicas, afrouxam-se as políticas e morais. Prevalece o padrão do mais forte.
A globalização tem sombras e luzes.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.



O canto das sereias


A família peemedebista se sucede nas instâncias do poder com direito a conceder a aliados cargos e prebendas.
Ei-lo: o Partido do Movimento Democrático Brasileiro à frente das duas casas congressuais: o Senado (Renan Calheiros) e a Câmara dos Deputados (Henrique Eduardo Alves). Nem na Roma antiga, republicana, tal fenômeno parecia possível. Em nome da divisão de poderes, as famílias nobres cultuavam a diversidade como antídoto ao absolutismo. Aqui não; a cobra fuma e não expira.

O PMDB terá, a partir de 2015, uma bancada de 19 senadores, 66 deputados federais, e governará sete estados. De fato, é um partido repartido em tendências inclusive antagônicas. Nele há de tudo, desde o testemunho ético de um Pedro Simon às recorrentes denúncias de corrupção que historicamente pesam sobre alguns de seus líderes. Ele pratica, mais que a democracia, a demoarquia, originária do verbo gregoarchein, que significa ser o primeiro, estar à frente, no sentido de comandar processos.

Ora, pra que plebiscitos se, há décadas, vivemos no regime parlamentarista? O PMDB exerce a função de primeiro-ministro, o Executivo preside. Ou quem sabe estamos, sem nos dar conta, em plena monarquia! A família peemedebista se sucede nas instâncias do poder com direito a conceder a correligionários e aliados cargos e prebendas.

Não importa que os discursos sejam outros. Na Inglaterra, enquanto o parlamento grita, a rainha reina. Aqui, idem. Haja o que houver, estamos em mãos do mais despudorado fisiologismo, cujos discursos sobrevoam eloquentemente as práticas do clientelismo e do compadrio. Se o mundo gira e a Lusitana roda, os governos se sucedem e o PMDB impera. Hay gobierno, soy a favor, grita a ala dos peemedebistas acostumada a mamar nas tetas da máquina pública...

Coitado do doutor Ulysses Guimarães e toda a sua luta por uma democracia participativa! Conta Homero, na "Odisseia", que Ulisses encontrou na Ilha das Sereias curiosas criaturas com cabeças e vozes de mulheres, mas com corpos de pássaros que, com doces canções, atraíam marinheiros ao encontro das rochas. Quando o barco se aproximou, uma calmaria se abateu sobre o mar, e a tripulação utilizou os remos. De acordo com as instruções de Circe, Ulisses tampou os ouvidos da tripulação com cera, enquanto ele próprio foi amarrado ao mastro, de modo que pudesse ouvir a canção e passar a salvo pelo perigo. "Aproxime-se Ulisses!", cantavam as sereias. Ulisses resistiu, mas quantos, a bordo do transgoverno chamado PMDB, são capazes de tapar os ouvidos ao canto das sereias?

Narra ainda Homero que Penélope, fiel esposa, rechaçou todos os pretendentes, até que surgisse um homem capaz de atirar com o arco de Ulisses. Nenhum deles conseguiu. Até o dia em que um mendigo tomou em mãos o arco, retesou-o e, na mesma hora, Penélope reconheceu nele seu amado Ulisses.

A democracia brasileira espera, como Penélope, o dia em que poderá reconhecer sua plenitude na inclusão social daqueles que, hoje, se nos apresentam como o maltrapilho Ulisses.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.



Caso Jobim, afinal reconhecido


No Rio, escutei no rádio, na manhã de sábado, 24 de março de 1979, que o embaixador José Jobim havia sido sequestrado há dois dias. Estranhei. Jobim não tinha envolvimentos políticos, embora fosse homem progressista.Era pai de Lygia Maria, casada com o editor Ênio Silveira, e de cuja filha, Maria Rita, sou padrinho.

Fui à casa da família, no Cosme Velho. Ao chegar, soube que o corpo havia sido encontrado na Barra da Tijuca.

Ênio e eu fomos ao local. De fato, ali estava o embaixador morto. Mas toda a cena nos pareceu estranha: enforcado em um arbusto inferior à altura de seu corpo e em um canteiro divisor das pistas de uma avenida do Itanhangá...

Havia curiosos em volta, policiais e o delegado Rui Dourado. Este nos disse: "O embaixador apanhou bastante." E que, pelas características do ocorrido, os autores não eram bandidos comuns.

Na época, o caso foi encerrado como "suicídio". Lygia Maria, editora como o marido, não se conformou. Fez Faculdade de Direito e se dedicou a investigar o caso durante 34 anos.

Em 1983, a então promotora Telma Diuana (hoje desembargadora aposentada), designada para reabrir o caso, solicitou novas investigações, baseando-se na "dubiedade do laudo que concluiu pelo suicídio".

O inquérito mudou a versão inicial ao apurar que os fatores da morte eram "todos incompatíveis com a hipótese adotada pelos legistas oficiais." Foi arquivado como "homicídio por autor desconhecido."

Lygia não se conformou. Ênio e eu éramos testemunhas de que nenhum suicida escolheria para se enforcar um arbusto incapaz de sustentar seu corpo. Era evidente que ele havia sido colocado ali. Como Antígona, Lygia sabia muito bem que, sob ditaduras, nada é como parece.

Jobim, se antecipando ao que o Brasil assiste hoje, havia dito à família que pretendia denunciar, na posse do general Figueiredo, os esquemas de superfaturamento na construção de Itaipu, cujo valor inicial foi multiplicado por dez ao longo das obras.

Lygia não busca indenização. Quer apenas "o reconhecimento de responsabilidades. Itaipu matou meu pai e os agentes do Estado destruíram as provas." E promete não descansar enquanto não descobrir de quem partiu a ordem para "suicidar" seu pai.

Felizmente, a Comissão da Verdade o incluiu entre as vítimas da ditadura militar.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.

Natal, nascer de novo


Com certeza o Natal papainoélico é a única festa em que a ressaca se antecipa à comemoração
Natal é tempo de desconforto. Premidos pela publicidade que troca Jesus Cristo por Papai Noel, somos desdenhados como cidadãos e aliciados como consumidores.

Ainda que com dinheiro no bolso, instala-se um oco em nosso coração. Aquece-se a temperatura de nossa febre consumista e, discípulos fundamentalistas de esdrúxula seita, adentramos em procissão motorizada nas catedrais de Mamon - os shopping centers.
Nessas construções imponentes, falsos brilhantes da cenografia cosmopolita, aguardam-nos as oferendas da salvação, premissas e promessas de felicidade. Exibidas em requintados nichos, vitrines reluzentes, acolitadas por belas ninfas, as mercadorias são como imagens sagradas dotadas do miraculoso poder de nos fazer ingressar no reino celestial dos que tudo fazem para morrer ricos.

Livres de profanas figuras que poluem o exterior, como as crianças que transmutam as janelas de nossos carros em molduras do pavor, percorremos silentes as naves góticas, enlevados pela música asséptica e o aroma achocolatado de supimpas iguarias.

Olhos ávidos, flexionamos o espírito de capela em capela, atendidos por solícitas sacerdotisas que, se não podem ofertar de graça o manjar dos deuses, ao menos nos brindam com seus trajes de vestais romanas, condenadas à beleza compulsória.

Eis ali, no altar de nossos sonhos, o Céu antecipado na Terra na forma de joias, aparelhos eletrônicos, roupas e importados, sacramentos que nos redimem do pecado de viver neste país cuja miséria estraga a paisagem.

Com certeza o Natal papainoélico é a única festa em que a ressaca se antecipa à comemoração. Tomem-se vinhos e castanhas, panetones e perus, e um punhado de presentes, eis a receita para disfarçar uma data. E sonegar emoções e sentimentos. Mas não é Natal.

Para se fazer festa de Natal é preciso aquecer afetos e servir, à mesa, corações e solidariedade, destampando a alma e convertendo o espírito em presépio, onde renasça o Amor. Dar-se em vez de dar, estreitando laços de família e vínculos de amizade.

Urge abrir o dicionário gravado nas dobras de nossa subjetividade e substituir competição por comunidade, inveja por reconhecimento, ressentimento por humildade, eu por nós.

Melhor que nozes nesses trópicos calientes, convém saciar a língua de prudência, privando-se de falar mal da vida alheia.
Um pouco de silêncio, uma oração, a retração do ego, favorecem o encontro consigo mesmo, sobretudo a quem se reconhece alienado de Deus, dos outros e da natureza. Não custa pisar no freio dessa destrambelhada corrida de quem, no afã de ultrapassar o ritmo do tempo, corre o risco de ter a vida abreviada pela exaustão do corpo e a confusão da mente.

Antes dos copos, recomenda-se encher o coração de ternura até transbordar pelos olhos e derramar-se em afagos e beijos.
Pois de que vale o Natal se não temos coragem de nos dar de presente a decisão de nascer de novo?

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.

Faça novo o teu ano


Neste ano-novo, se faça novo, reduza a ansiedade, regue de ternura os sentimentos mais profundos, imprima a seus passos o ritmo das tartarugas e a leveza das garças.


Não se mire nos outros; a inveja mina a autoestima, fomenta o ressentimento e abre, no centro do coração, o buraco no qual se precipita o próprio invejoso.


Espelhe-se em si mesmo, assuma seus talentos, acredite em sua criatividade, abrace com amor sua singularidade. Evite, porém, o olhar narcísico. Seja solidário: estenda aos outros as mãos e oxigene a própria vida. Não seja refém de seu egoísmo.


Cuide do que fala. Não professe difamações e injúrias. O ódio destrói a quem odeia, não o odiado. Troque a maledicência pela benevolência. Comprometa-se a expressar alguns elogios por dia. Sua saúde espiritual agradecerá.


Não desperdice a existência hipnotizado pela TV ou navegando aleatoriamente pela internet, naufragado no turbilhão de imagens e informações que não consegue sintetizar. Não deixe que a sedução da mídia anule sua capacidade de discernir e o transforme em consumista compulsivo. A publicidade sugere felicidade e, no entanto, nada oferece senão prazeres momentâneos.


Centre sua vida em bens infinitos, nunca nos finitos. Leia muito, reflita, ouse buscar o silêncio neste mundo ruidoso. Lá encontrará a si mesmo e, com certeza, um Outro que vive em você e que quase nunca é escutado.


Cuide da saúde, mas sem a obsessão dos anoréticos e a compulsão dos que devoram alimentos com os olhos. Caminhe, pratique exercícios, sem descuidar de aceitar as suas rugas e não temer as marcas do tempo em seu corpo. Frequente também uma academia de malhar o espírito. E passe nele os cremes revitalizadores da generosidade e da compaixão.


Não dê importância ao que é fugaz, nem confunda o urgente com o prioritário. Não se deixe guiar pelos modismos. Faça como Sócrates, observe quantas coisas são oferecidas nas lojas que você não precisa para ser feliz. Jamais deixe passar um dia sem um momento de oração. Se você não tem fé, mergulhe em sua vida interior, ainda que por apenas cinco minutos.


Arranque de sua mente todos os preconceitos e, de suas atitudes, todas as discriminações. Seja tolerante, coloque-se no lugar do outro. Todo ser humano é o centro do Universo e morada viva de Deus. Antes, indague a si mesmo por que, às vezes, provoca nos outros antipatia, rejeição, desgosto. Revista-se de alegria e descontração. A vida é breve e, de definitivo, só conhecemos a morte.

Faça algo para preservar o meio ambiente, despoluir o ar e a água, reduzir o aquecimento global. Não utilize material que não seja biodegradável. Trate a natureza como aquilo que ela é de fato: a nossa mãe. Dela viemos e a ela voltaremos. Hoje, vivemos do beijo na boca que ela nos dá continuamente ao nutrir cada um de nós de oxigênio e alimentos.


Guarde um espaço em seu dia a dia para conectar-se com o Transcendente. Deixe que Deus acampe em sua subjetividade. Aprenda a fechar os olhos para ver melhor.
 
Feliz 2015!

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.

Coral desafinado


A foto de Dilma com seus 39 ministros, no dia da posse, mostra cara e não coração. E muito menos convicções.
Em menos de uma semana de novo governo, as vozes ministeriais soam desafinadas. Nelson Barbosa, do Planejamento, declarou que o salário mínimo seria, em breve, submetido a novas regras. A presidente o enquadrou e, no mesmo dia, ele veio a público desdizer o que disse.

Kátia Abreu, ministra da Agricultura, visando a agradar o segmento que ela representa no governo (o agronegócio, e não o PMDB), declarou que, no Brasil, não existe latifúndio, e que a reforma agrária em massa "não é necessária".

No dia seguinte, ao tomar posse, Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Agrário, disse que "não basta derrubar a cerca do latifúndio, é preciso derrubar as cercas que nos limitam a uma visão individualista e excludente do processo social." E acrescentou que "o direito de propriedade não pode, em nosso tempo, ser um direito incontrastável, inquestionável e que prevalece sobre todos os demais direitos."

O ministro do Esporte, George Hilton, não teve vergonha de admitir ao tomar posse: "Vou tranquilizá-los: posso não entender profundamente de esporte, mas entendo de gente." Pena que não tenha sido escalado para o setor de Psicologia do Ministério da Saúde. Ou para o cerimonial do Itamaraty. E, tendo em vista as Olimpíadas de 2016, causou intranquilidade geral.

As únicas vozes afinadas, até agora, são as dos ministros Aloizio Mercadante, da Casa Civil, e Joaquim Levy, da Fazenda. O primeiro comunicou à nação, antes que 2014 findasse, cortes no seguro-desemprego, no abono salarial, na pensão por morte (incluídos militares?), no auxílio-doença e no seguro a pescadores.

Quase todos direitos de interesse direto dos pobres. Joaquim Levy, ao ser empossado, prometeu cortar gastos e promover "ajustes em alguns tributos."

Teremos uma reforma tributária na qual quem ganha mais paga mais ou cortes e ajustes afetarão a vida da maioria da população?

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.

Hilda furacão: o enigma


Frei Betto
Morreu em Buenos Aires, no último 29 de dezembro, a brasileira Hilda Maia Valentim, 83. Segundo reportagens, ela teria inspirado o romance "Hilda Furacão", de Roberto Drummond, lançado em 1991.Glória Perez, aos transformar o livro em minissérie para a TV, em 1998, me convidou para almoçar. Queria saber quem, de fato, era Hilda Furacão, pois o autor declarara que somente ele e eu tínhamos noção do paradeiro da moça de classe alta que se tornou prostituta na zona de baixo meretrício de Belo Horizonte.

Até Glória Perez, uma profissional da ficção, se convencera de que a fantasia era realidade! E muitos ainda acreditam que o frei Malthus da história sou eu, embora nunca se tenha encontrado o menor indício para comprová-lo, exceto o fato de os dois, personagem e eu, serem frades dominicanos.

Não é incomum figuras fictícias serem consideradas históricas. Guilherme Tell é tido por muitos, na Suíça, como personagem histórico, e há até estátuas em sua homenagem. Como há na Espanha uma infinidade de monumentos em homenagem a Dom Quixote, que só existiu de fato na imaginação de Cervantes.

Roberto Drummond e eu trocávamos confidências sobre nossos projetos literários. Foi em torno de um chope, em Belo Horizonte, que criamos a personagem Hilda Furacão. A moça de classe alta que se torna prostituta e seduz um frade.

Talentoso, Drummond enriqueceu o livro com ingredientes da receita de best-seller: quase todo o entorno da narrativa é real (o golpe militar, o clube, a zona boêmia...), exceto o miolo: a saga de Hilda Furacão.

Sob o sucesso da minissérie, meu telefone não parava de tocar. Repórteres ansiavam saber onde vivia Hilda Furacão e quem ficara com os sapatos dela... (haja Cinderela!). Uma emissora de TV quase cedeu à chantagem de um espertalhão que, em troca de uma bolada de dólares, prometeu apontá-la na porta do hotel em que ela residia em Miami...

Em maio de 2014, a brasileira Marisa Barcellos recebeu, no asilo em que trabalha em Buenos Aires, sua conterrânea Hilda Maria Valentim. Supôs tratar-se da mulher que inspirou a personagem e entrou em contato com Ivan Drummond, jornalista e parente do escritor.

Ivan confirmou haver encontrado a musa: Hilda Valentim nascera em Belo Horizonte! Porém, ao contrário da Furacão, não pertencera à elite mineira nem fora prostituta. Casou com Paulo Valentim, que jogou futebol pelo Boca Juniors na década de 1960. O marido faleceu em 1984. Hilda permaneceu na Argentina, e teria ganhado o apelido de Furacão por ser brigona...

Pode ser que Roberto Drummond, que também escrevia sobre futebol, tivesse noção da história de Hilda e Paulo Valentim. Mas prossigo convencido de que há apenas pequenas coincidências entre as duas Hilda. A história da Valentim também se presta à criação ficcional. E guardo a certeza de que a personagem de Roberto Drummond e sua saga nasceram em uma mesa de bar na Savassi, em Belo Horizonte.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.



Pátria de semianalfabetos


No meu tempo de ensino fundamental, redação tinha o belo nome de composição.
Frei Mateus Rocha, frade dominicano e guru de uma geração indignada, nos aconselhava a levar sempre um livro, ainda que sob certeza de não haver tempo de abri-lo. Abracei a recomendação e me surpreendo com as inúmeras oportunidades, ao longo do dia, de prosseguir a leitura.
No meu tempo de ensino fundamental, redação tinha o belo nome de composição. Ainda hoje, ao escrever, me sinto "compondo", imprimo ao texto uma musicalidade que os entendidos chamam de sotaque literário.
As novas tecnologias ameaçam o prazeroso ato de ler e escrever. Fissurados nas redes sociais, muitos reduzem a linguagem aos seus signos elementares e preferem ver o turbilhão de imagens a ler a cadência narrativa.
Ler e escrever exigem educação, aprendizado, amor à palavra lida e escrita, para que ela nos ofereça seus múltiplos significados e nos revele a beleza que encerra.
A presidente Dilma, ao ser reempossada, a 1º de janeiro, cunhou o lema: "Brasil, pátria educadora". Prometeu que a educação, afinal, será prioridade de governo (embora já tenha sofrido um corte, este ano, de R$ 7 bilhões em seu orçamento).
Tomara que o governo ponha fim às escolas sucateadas, à má remuneração dos professores, à carência de tempo integral. As escolas públicas, excetuando universidades, fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem. Qual será o futuro de uma pátria cujos cidadãos e cidadãs não sabem escrever uma simples redação escolar?
Há pouco saiu o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2014. Prestaram exames 5,9 milhões de jovens brasileiros.
O estudante aprovado no Enem tem o direito de se inscrever para ocupar uma das 205.514 vagas oferecidas, em 2015, por 59 universidades federais; 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia; e dois centros federais de educação tecnológica.
Dos quase 6 milhões inscritos, 529.374 ganharam nota zero em redação, cujo tema proposto foi "Publicidade infantil", questão em debate na sociedade, suscitada pelo Instituto Alana.
Entregaram a prova em branco 280.903 alunos. São os analfabetos funcionais, aqueles que não cultivam o hábito de leitura e, com certeza, redigem apenas monossílabos e símbolos gráficos nas redes sociais... Eles sabem ler mas não compreender o que leem.
Um total de 217,3 mil redigiram um texto alheio ao tema. Treze mil copiaram o texto motivador; 7,8 mil escreveram menos de sete linhas; 3,3 mil embutiram na redação trechos do texto motivador de forma desconectada; e 955 escreveram ofensas aos direitos humanos. E apenas 250 mereceram a nota mais alta!
Os que mereceram nota máxima em redação revelaram a razão do êxito: o hábito de leitura de livros e redação de textos. Hábito que começa na infância, quando pais e professores contam e leem histórias, ajudando a criança a desenvolver a síntese cognitiva.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.

Novos perfis de família


Maria Antônia, bebê gaúcho, tem duas mães, um pai, seis avós! Nascida em Santa Maria, em setembro de 2014, o juiz Rafael Cunha autorizou seu registro de nascimento.

Os pais são Fernanda, Mariani e Luis Guilherme, que engravidou uma das moças e fez questão de ter seu nome na certidão de nascimento. O juiz reconheceu legalmente que Maria Antônia nasceu em um "ninho multicomposto".

Desde que resolução do Conselho Federal de Medicina, em 2013, permitiu a utilização de técnicas de fecundação "in vitro" por casais homoafetivos, cresceu no Brasil o número de crianças registradas em nome de dois pais ou duas mães.

O preconceito ainda impede que muitos reconheçam o óbvio: o perfil da família já não se restringe ao da relação monogâmica heterossexual.

Quem melhor percebe essa mutação é o papa Francisco que, em vez de se fingir de cego, como papas anteriores frente aos fenômenos da pós-modernidade, convocou um sínodo para debater o tema. Precedido por reunião extraordinária em outubro de 2014, o Sínodo da Família terá lugar em Roma, em outubro deste ano.

No questionário remetido a todas as dioceses do mundo, o papa pergunta como os católicos encaram casais recasados, a homossexualidade e outros temas considerados polêmicos no interior da Igreja. Francisco quis ouvir as bases, num gesto inédito de democratização da instituição eclesiástica.

É o fim da família? A família é uma estrutura cultural, não natural. Tal como a conhecemos hoje, existe há apenas meio milênio. Aliás, hoje se multiplicam as famílias monoparentais, cujo "chefe" é a mãe. Em comunidades indígenas, a qualidade de proteção e afeto às crianças faz a todos nós, "civilizados", corar de vergonha.

Para quem, como eu, foi educado no catolicismo à luz de estampas da Sagrada Família, não é fácil acolher os novos perfis de relações afetivas. Porém, ao abrir o Evangelho, nos deparamos com algo distinto do modelo devocional: o jovem Jesus que se desgarra do cuidado dos pais e abandona a caravana de peregrinos; o pregador ambulante que não merece a credibilidade de seus irmãos (João 7,5) e a família o tem na conta de "louco" (Marcos 3,21-31); o filho que parece rejeitar a própria família: "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?" (Mateus 12, 48).

Quando exclamaram a Jesus "Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram", ele não desmentiu, mas assinalou a diferença: "Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam." (Lucas 11, 27-28).

Jesus enfatizou que não são os laços de sangue que mais aproximam as pessoas, e sim o projeto comum que elas assumem.

Projetos alternativos criam conflitos. Jesus chegou a falar em "odiar" a própria família (Lucas 14, 26). O verbo grego miseo (=odiar) pode ser traduzido por "amar menos": "Se alguém quer me seguir e não prefere a mim mais que a seu pai e sua mãe..."

Frente ao modelo de família-gueto, centrada no umbigo de seus membros e avessa a estranhos e necessitados, Jesus propôs um modelo de família aberta, centrada no afeto, na gratuidade e na abertura ao próximo.

A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas relações de intimidade e reciprocidade.

E há que lembrar que, em sua recente visita à Ásia, o papa Francisco rogou aos fiéis católicos que evitem "ser como coelhos", procriando irresponsavelmente. Um sinal de que os métodos contraceptivos, como o uso do preservativo, serão afinal aceitos pela Igreja Católica?

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.

Odete Lara, namorada de Deus


Odete Lara participava de grupos de oração que assessoro há 35 anos. Era uma mulher profundamente espiritualizada. Sua maior contribuição aos orantes, sobretudo em retiros espirituais, era nos introduzir nas etapas da meditação.

Discípula do mestre zen-budista Thich Nnhat Hanh, cujas obras introduziu no Brasil, e com quem estagiou no Vietnã e na França, Odete transformou seu sítio, em Nova Friburgo (RJ), em um pequeno mosteiro. Ali curtia, feliz, a solidão.

Após muitos namoros e dois casamentos,  Odete se encontrou na experiência mística. Eu disse a ela: "Sua fome de amor é tanta, que só mesmo Deus para saciar seu coração."

Afeita à memohistória, Odete publicou três autobiografias: Eu nua, Minha jornada interior e Meus passos na busca da paz. Em 2004, me enviou os originais da quarta, que permanece inédita.

Respondi: "Li seu texto. Achei-o de muita profundidade, um depoimento comovente, que merece ser publicado. Fará bem a muitos. Sugiro até um título, se é que você já não tenha em vista outro melhor: 'Itinerários'. Seu texto me trouxe de volta uma inquietação que me persegue: que tal um "mosteiro" ambulante, uma espécie de Ordem monástica sem centro, exceto o coração de cada adepto? Também sem regras, exceto a de meditar uma hora por dia e manter o coração aberto ao próximo, sobretudo aos mais pobres? Seria como os grupos de oração, só que um pouco mais exigente na prática da contemplação. São intuições que me frequentam, mas confesso que eu mesmo quero a liberdade que você conquistou."

Nos últimos anos de vida, Odete recusou vários convites para reassumir sua vocação de atriz. Havia encontrado, na espiritualidade, seu lado avesso. Sentia-se plena. Namorada de Deus.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.


Desafios à educação escolar

17/02/2015  |  domtotal.com


A educação escolar exerce papel fundamental em todo processo de transformação social. À semelhança da política e da religião, a educação serve para libertar ou alienar; despertar protagonismo ou favorecer o conformismo; incutir visão crítica ou legitimar o status quo, como se ele fosse insuperável e imutável; suscitar práxis transformadora ou sacralizar o sistema de dominação.

Nesse inicio de século XXI, a educação escolar difere muito da que predominou no século XX. Hoje, nosso cotidiano é invadido por novas tecnologias que nos trazem, em tempo real, informações capazes de interferir em nossa forma de existência e de relacionamentos (ciberespaço, relações virtuais, crise das ideologias libertárias, novos perfis familiares e sexuais, monopólio e manipulação da informação etc.)

Por viver em uma mudança de época e trafegarmos entre a modernidade e a pós-modernidade, somos ameaçados pela crise de identidade teórica. O instrumental teórico que tanto nos confortava e incentivava no século XX, e que nos parecia tão sólido, ruiu com a crise da modernidade e da razão instrumental.

O que impede a educação de formar pessoas altruístas? Falta uma educação que, além da escolaridade, de transmissão cultural do país e da humanidade, suscite nos educandos visão crítica da realidade e protagonismo social transformador.

De fato, em muitos países a educação escolar se tornou uma prisão da mente, onde as disciplinas curriculares são sucessivamente repetidas, visando à qualificação da mão de obra destinada ao mercado de trabalho. Não se cogita a prioridade de formar cidadãos e cidadãs solidariamente comprometidos com o projeto social emancipatório.

Vivemos, hoje, na era do impasse frente ao futuro emancipado. Estamos no limbo do processo libertário. Movimentos, grupos e partidos de esquerda, quando existem, parecem todos perplexos perante o futuro. Muitos cedem à força cooptadora do neoliberalismo e trocam o projeto de libertação social pelo mero usufruto do poder, ainda que isso implique corrupção e traição às esperanças dos oprimidos.

A hegemonia capitalista exerce um poder tão avassalador, que muitos de nós abdicam do propósito de construir um novo modelo civilizatório. Aos poucos, como se fosse um vírus incontrolável, o capitalismo se impõe em nossas relações pessoais e sociais. Vamos aderindo à fé idolátrica de que "fora do mercado não há salvação".

Na esfera pessoal, abrimos mão de nossa ideologia libertária em troca de uma zona de conforto que nos permita acesso ao poder e à riqueza, livrando-nos da ameaça de integrar o contingente de 2,6 bilhões de pessoas que, hoje, sobrevivem com renda diária inferior a 2 dólares!

A escola é, sim, um espaço político. Se não tiver clareza de seu projeto político pedagógico, corre o risco de se transformar em mero balcão de negócios para diplomar competidores avessos à ética e aos direitos humanos.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "Batismo de Sangue", e "A Mosca Azul", entre outros.